"Meu gato e minha gata..." , é assim que eu os chamo quando chego. Ela não para quieta. Ele conta histórias cheias de curiosidades, pega da gaveta um dicionário gigante. Um dia desses saiu de lá um livro, de capa verde, o vocabulário tupi-guarani. São muitas as vezes em que entro na sala e me deparo com uma cena tão, tão... tranquila, essa é a melhor descrição. Os dois sentados, um em cada cabeceira da mesa quadrada de vidro, jogando o viciante jogo de baralho, a luz da tarde sempre entra radiante iluminando aquelas mãos em que o tempo deslizou e deixou algumas marquinhas. Os dois com os óculos escorregantes , praticamente chegando na pontinha arrebitada das narinas. Sempre sento e fico parada, olhando para aquela cena, tentando gravá-la em cada detalhe. Com sorrisos proeminentemente suaves, escorregam histórias dos tempos de baile, onde ele era apenas mais um e ela a mais bonita da festa... Dá para notar o orgulho que ele tem de ter conquistado a mais interessante de todas a outras que havia. Cenas de ciúmes de vez em quando dão o ar da graça, quando vêm à tona algumas lembranças de trinta anos atrás, chega a ser engraçado...Os cinquenta e quatro anos de casamento somem em um instante. De repente surgem dois jovens discutindo, um em cada cabeceira, ela com os cabelos negros e ele com uma magreza juvenil, consigo enxergá-los assim... realmente voltam no tempo. Sempre um dos dois cessa com um "tá,tá bom...", deixando clara a discordância ao concordar. Voltam ao jogo. Sempre me convidam , mas eu prefiro ficar de fora, observando. Sempre vem um cheirinho de café ou alguma outra proeza que ela inventa. Ele come tudo. Dessa vez eu, também , não escapo. Tem horas que rola um som muito doido, uma bossa nova. Os dois dançam, às vezes ele ou ela me pegam para dançar também, essas horas costumam ser beeem engraçadas. Outras horas ela está dando um jeitinho nas unhas ou então fazendo fuxico com tecidos coloridamente alegres, enquanto ele tenta domar um estranho bicho que fica na sala de tv, um tal de notebook, fica hooras vendo na internet a localização por satélite da cidadezinha de onde vieram, bairros, fotos, cada uma acompanhada de um punhado de histórias. No final dessas tardes, respiro bem fundo, para guardar, também , o cheiro comigo. Saio de lá cada dia mais convencida de que me pareço muito, muito com eles, minha ponte com o passado, minha fonte de energia, meu alerta nostálgico de um tempo em que eu nem existia... meus gatos, meus amores, meus avós...
by cereja